domingo, 1 de março de 2015

Ao inerente.

Abre os olhos num sábado de manhã qualquer. Ele tem total noção do dia, mas não da hora. A resolução, assim, é esticar o braço preguiçoso até o criado-mudo onde está o celular que marca 10 horas e 42 minutos. Sabe que é tarde, mas decidiu permanecer prostrado na cama, na breve paz dos recém-acordados. Sabe, também, que, diferente de todas as outras manhãs em que acorda mais cedo que sua namorada e deixa preparado para ela o café-da-manhã, já que ela entra no trabalho mais tarde e não precisa viajar para exercer suas funções profissionais, ela acordou há umas duas horas e agora deve estar no supermercado comprando os ingredientes para o almoço. Ela diz que isso serve como equilíbrio na relação: aos finais de semana é a sua vez de levantar um tanto mais cedo.
Vira-se na cama e deita com o nariz diretamente no travesseiro da namorada e parceira de casa. Gosta da essência que sente penetrar em suas vias aéreas, e a paz se prolonga por mais alguns instantes. Ainda incipiente está o inerente a ele, que não sabe explicar.
“Você é um cara de sorte”, ressalta um dos seus amigos de bar. Já ouviu isso diversas vezes. “Está fazendo o que gosta, ganha um bom salário, tem uma namorada simpática. Não pode reclamar, cara.” Não gosta do termo sorte que, para ele, descredita todo um período de extremo esforço. A atitude do outro é defini-lo como sortudo; dessa forma consegue, além de indiretamente mostrar seu inconformismo com a sua situação, diminuir as conquistas do seu amigo. Conquistas. É uma palavra bizarra, mas não tem como fugir dela. Não pode se incomodar com absolutamente tudo. É reconfortante ter a ciência que se virou bem em sua história pessoal. A história que cada um tem e gostaria de contar (e gostaria de usar como justificativa, sempre como justificativa para as suas ações equivocadas; disfarçar-se de inocente perante todas as ações; há sempre alguma explicação plausível até para os atos mais desprezíveis.)
Ouve a porta da sala do apartamento se abrindo, o som de sacolas plásticas sendo colocadas com certo cuidado em cima da mesa central. Ele já está totalmente desperto, mas persiste em continuar deitado. A namorada entre com extremo cuidado no quarto, no entanto logo percebe que ele está acordado. Dá um beijo em sua testa e afirma que é tarde, e pergunta-afirmando que ele não tomará o café-da-manhã, que é melhor esperar pelo almoço. Ele confirma com um gesto obediente de cabeça.
Deitado ele pensa: almoçar, terminar finalmente de escrever um artigo, assistir um filme com ela (hoje a escolha é dela), jogar basquete com os amigos, sair para jantar, transar e dormir. Não sabe por que tem a necessidade de planejar até quando a transa irá acontecer, mas sempre o faz.
“Hoje vou jantar com os meus pais”, ela grita lá da cozinha. Não sabe o que dizer. Interpreta aquilo como um convite para não ir e diz que tudo bem, que ele pede alguma pizza ou algo do tipo. Ela não diz nada.
A paz se esvai. Tem total consciência que não vai escrever o artigo, que talvez vá jogar basquete como uma forma de escape a frustração anterior, que ela provavelmente vai voltar puta por conta de algo que o pai falou e não vão transar. Precisa de escape para tudo. Feliz enquanto dá aulas, mas a preferência é por tê-la ao lado. Feliz por tê-la ao lado, mas não vê a hora de ouvir as interpretações dos alunos àquele conto requisitado para leitura. Não se conforma com a impossibilidade de total satisfação.
O relógio do celular marca 10 horas e 48 minutos. Sente fome. Droga, deveria ter respondido que iria pelo menos comer alguma coisinha antes do almoço. Porque essa angústia por pequenices?
Vai ser sempre assim? Sempre foi assim.
De repente ela entra no quarto carregando um pãozinho com manteiga: “É para enganar o seu estômago até o almoço”. Ele a abraça da forma mais carinhosa e, talvez, piegas possível. “Nada disso. Coma e depois trate de terminar aquele artigo.” A paz é restaurada por mais alguns instantes. Espera que seja sempre assim. Gosta de se enganar, planejar tantos as tristeza quanto as alegrias.

domingo, 17 de agosto de 2014

Ao suposto fiasco

Ele pensava tão fortemente que aquele momento estava tomando a forma de um grande fiasco que acabou por falar, como se para si mesmo, mas num volume audível para a outra pessoa:
      - Deus, isso é um fiasco.
        Como num romance do século XIX, logo após pronunciar essas palavras, ele corou.
      - Por que pensa nisso como um fiasco? - ela perguntou docemente.
      - Eu realmente vou ter que apontar os motivos? - ele já parecia um tanto quanto irritado.
      -“Apontar os motivos”? Quem fala assim? - ela também, talvez com o pedantismo dele.
      - Muitas pessoas falam desse modo. Isso não é importante, no entanto. Você quer rever toda a nossa conversa com o intuito de eu ilustrar que tal encontro está fadado ao fiasco, se é que já não o é?
      - Você poderia ser mais pedante? - eu estava certo, era realmente o pedantismo dele que a estava irritando.
       - É uma pergunta retórica?
       - Sim.
       - Ok, vamos rever todo a nossa noite para encontrar os porquês desse nosso fracasso.
       - Eu não falei nada sobre fracasso. Não me inclua nisso.
       - Um encontro pode ser um fracasso para um mas não para o outro?
       - Sim. Mas fale logo. Faça seus apontamentos. - ela fez questão de prolongar a última palavra da sua sentença.
       Antes dos apontamentos, no entanto, pode ser útil apresentar o lugar no qual nossos personagens estão inseridos e o que acontece ao redor deles.
       Eles estão na parte de dentro de um bar bem localizado daquela cidade que costuma atrair grande público principalmente aos finais de semana. Entretanto, eles estavam ali numa quarta-feira à noite. Não havia, assim, muitos clientes, apenas outros dois casais em mesas próximas e um homem de meia-idade que observa atenta e melancolicamente que Bob Dylan vem sendo a trilha sonora da sua solidão. Ele, como o clichê me obriga a declarar, estava no balcão do estabelecimento, pensando se deveria ou não entabular conversa com a garçonete que ali permanecia. O que o nosso apreciador de folk não sabia, infelizmente, é que aquela que estava a lhe servir espera exatamente algum tipo de entretenimento.
       Um dos casais parecia satisfeito com o silêncio entre eles. De mãos dadas, aproveitavam a ocasião. Relaxavam bebendo cerveja e apenas admirando um ao outro. Depois de oito anos de relacionamento, não há mais tantas histórias para se contar e, nesse caso, se houvesse, elas provavelmente gerariam algum tipo de desconforto, já que, bem no íntimo de cada um, vamos dizer que qualquer palavra pode ser motivo para brigas. O relacionamento se mantem na comodidade das rotinas conjuntas e do sexo certo. Eles se gostam, mas apenas vão perceber a grande força de seus sentimentos no momento em que ele decidir que é melhor aceitar aquele doutorado na França e ficar longe dela por um tempo bastante razoável.
      O outro casal não é lá muito interessante. Eles dialogavam pelo celular com amigos e possíveis amantes, na falta de uma palavra mais adequada. Entre eles, em comum, a grande vontade de transar, o que é suficiente para a felicidade ulterior e passageira, porém reconfortante, de ambos.
     Voltamo-nos aos nossos protagonistas. Ele estava na tentativa de explicar a ela o fiasco da noite. Com o efeito do álcool, a eloquência de ambos deu as caras.
    - Pois bem. Primeiramente, nós nem nos conhecíamos pessoalmente. Marcamos isso totalmente às cegas, apesar de eu ter tentado checar o que você gostava em redes sociais. Mas você parece bastante reservada, o que me intrigou. Resolvi, então, tentar conversar com você, já que temos amigos em comum. Foi difícil, mas marcamos de sair hoje, apesar das suas respostas monossilábicas virtualmente...
     - Eu não tinha nenhum outro plano para hoje.
     - Esse é um grande incentivo para se sair com alguém.
     - Não se ofenda. Eu poderia estar assistindo a filmes, jogando video-game, dormindo, dormindo e sonhando, estudando ou simplesmente protelando. Você pode se considerar um vencedor.
     - Estou encabulado. - ele disse ironicamente.
     - Continue a sua revisão da nossa noite, por favor.
     - Ah, sim. Viemos aqui e fiz perguntas sobre as suas preferências artísticas...
     - Você ficou ofendido quando eu disse que não tolerava Tarantino, é isso?
     - Não. - ele poderia ter sido mais honesto. Em parte foi isso.
     - Diga a verdade.
     - Ah, é que...
     - É apenas uma questão de gosto estético. O que eu digo não é uma verdade universal.
     - Ok, e quando perguntei sobre literatura, lembra o que disse?
     - Sim! Eu disse que Jack Kerouac é o meu escritor favorito...
     - Eu odeio a geração beat.
     - Eu percebi, mas o que você pensa não é uma verdade universal.
     - Droga. E sobre esportes?
     - Eu disse que não pratico.
     - E aí se acabou o assunto.
     - Você poderia ter me perguntado os motivos para eu não praticar. O assunto poderia ter fluído, sim. Eu até poderia ter fingido algum interesse.
     - É algo que você faz costumeiramente?
     - Todos fazemos.
     - Tenho que concordar, ainda mais num primeiro encontro.
     - Sim.
     - Certo, certo.
     - Vamos dizer que você está tomando toda a iniciativa da conversa também. Isso está totalmente unilateral.
     - Mas, mas...eu li que normalmente os homens tem que demonstrar certa segurança...
     - Isso é meio que autoritarismo. E você anda lendo auto-ajuda, é isso? - ela perguntou provocando-o.
     - Não exatamente. É que eu tenho certas dificuldades nesse tipo de situação...
     - Então apelou para a auto-ajuda?
     - Sim. - ele finalmente cedeu tristemente.
     - Ora, eu só estou brincando, tenha algum senso de humor.
     - Estou me acostumando com o seu jeito. Ainda não sei muito bem como agir.
     - Quer que eu procure alguma coisa do Augusto Cury para te ajudar?
     - Pelo menos ele vai dizer algo, diferentemente de alguns escritores que vão do nada ao lugar nenhum.
     Resta dizer que os dois continuaram se alfinetando por um bom tempo. Perderam a noção do tempo.   Nesse ínterim, ela, por conta já das muitas cervejas tomadas, teve que ir ao banheiro. Antes disso ela disse:
     - Já volto, estou apertada. Está meio tarde e amanhã trabalho. Tomamos um saideira, pode ser?
     - Sim, sem problemas. - ele disse tomado pela depressão do adeus.
     Estava realmente tarde. Ela, de fato, teria que trabalhar bem cedinho na quinta-feira; e, além disso, bem, apesar da diversão, ele parecia meio  que neuroticamente excêntrico.
     Voltando do banheiro, ela o pegou mexendo os lábios, num cantarolar mudo, por parte dele, mas não do sistema de som do bar, com os dizeres: “Stay, lady, stay, stay with your man awhile”.
     Nenhum dos dois haviam comentado sobre a trilha sonora da noite. Daí o arrebatamento dela em vê-lo daquele modo, mexendo os lábios para um dos músicos preferidos dela, pedindo inconscientemente pelo o que veio acontecer. Ele a viu contemplando-o; ele corou de novo; de súbito, ela também corou. Para a felicidade, principalmente, dele, que tanto o defendia, o fiasco não se deu por completo. Ela já não concordava de antemão com tal teoria. Em comparação com os outros personagens daquela história, já se via que a maior harmonia se encontrava nas provocações do nosso casal em foco.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

A um trabalho

Chegava sempre às 18:30. Ele e seus colegas tinham que arrumar as mesas,
deixá-las dispostas de maneira organizada e graciosa, mesmo havendo o fato de 92,3%
dos frequentadores daquele local não prestarem a mínima atenção a esses detalhes. Com
tudo muito bem disposto e checado – comidas, televisão, música e principalmente
bebidas – o bar é aberto às 19:31, de acordo com o relógio da personagem que estamos
acompanhando. Além de ele ainda insistir em usar tal acessório, este mostrava as horas
com 2 minutos de atraso; isso de acordo com celular do narrador, eu, no qual o tempo
era mensurado via satélite, não havendo riscos em haver desacertos. Porém, creditando
a existência da história à personagem, sugiro que se faça a conta e calcule que o bar
abriu no minuto exato que lhe era estipulado: 19:30.

Os garçons obedeciam à divisão feita pelo chefe. Um cuidava da parte interior
do estabelecimento, e dois da parte exterior, cada um ficando com um lado. Vitor, esse é
o nome do sujeito que estamos acompanhando, ficará no setor exterior esquerdo do bar.
No total terá que levar o bem-estar para 6 mesas, contabilizando, às vezes, mais de 50
pessoas procurando por algum divertimento. Era uma quinta-feira, o bar não deveria ter
sua lotação máxima, no entanto.

12 minutos após a abertura do bar, os primeiros clientes de seu setor chegaram.
Com isso acontecendo, o fluxo seguirá, apenas farei intervenções pontuais, que podem
ser muitas, aliás.

(Mesa 10)

- Oh, Vitão! Como você tá, meu velho? Tudo bem, cara? Me traz o
cardápio...não, não, quer saber?! Me traz aquela loira gostosa...a cerveja, cara (atesto
aqui que essas piadas já cansaram, mas como bom empregado, Vitor ri simpaticamente).
Daqui a pouco meus amigos chegam.

(Mesa 12)

- Ô, garçom! Psiu! OOO! Traz o cardápio aqui. Valeu, hein?! Viu, o que você
quer, amor?
- Que? Ah, só uma água, não quero beber hoje.
- Mas por que não? É a única noite que nos vemos na semana e não quer se
divertir? Mas que caralho. Traz uma caipirinha para ela dar uma animada.
- Não, já disse, não vou beber.
- Faz o favor, traz essa caipirinha para ela e uma cerveja para mim.
(Ela bebe toda a caipirinha, pede mais duas. Apenas os dois ocupam a mesa. Não
há diálogos).

(Mesa 10)

- Vitão, mais três copos que a galera chegou. Porra, mais quatro que a Carol já
chegou quebrando o meu. Já chega bêbada, puta que o pariu.
- Ah, cala a boca, Rafa. Vitão, me desculpe, você limpa aqui? Precisa de ajuda?
- E essa gola V, hein, Daniel?! Vai pegar uns rapazes hoje?
- Mano, odeio chegar depois que você. Cê já tá alto, meu Deus.
(Vitor limpa a mesa, recolhe os cacos do copo que não será cobrado)
- Obrigado, Vitão! Esse cara é muito gente boa.
Vitor permanece próximo à escada que dá acesso ao interior do bar. Dali tem
uma boa visão das mesas, mas é obrigado a ficar ao lado da 12.

(Mesa 12)

(O namorado está no celular, mexendo no Facebook, com cara de merda, aquela
que denuncia a falta de disposição em estar em certo lugar. Ela beberica sua segunda
caipirinha. Já está ruborizada por conta da bebida, parece que tem algo a dizer, mas fica
quieta, subserviente ao silêncio instaurado.)

(Mesa 8)

- O que vocês querem?
(Não foi possível distinguir o que cada um falou)
- Você pode esperar um minutinho, por favor? Não, espera aqui, é rápido, senão
você não volta mais. E aí, gente?
- Pede aquele breja da semana passada mesmo.
- Não, ela me dá uma puta dor de cabeça no outro dia. Tem alguma mais leve?
- Viado.
(Vitor entrega o cardápio)
- Porra, que breja cara!
- Vamos naquela mesma.
- É que você não trabalha amanhã.
(Vitor sorrateiramente deixou o lugar, atendeu a mesa 10, voltou e eles ainda não
tinham decidido).
- Manda a mais baratinha mesmo e pra ele pega a mais leve, vai. Mas você que
paga, hein, Gu.
- Tudo bem
.
(Mesa 10)

- Vitão, traz mais duas que o pessoal tá enxugando hoje. Ahh, e uma porção de
calabresa também.

(Mesa 12)

(Ela perceptivelmente tem os olhos vermelhos, porém contem as lágrimas que
brotam. Vai ao banheiro, volta reestabelecida. Ele não percebeu que ela foi nem voltou.
Continua no celular, comunicando-se virtualmente quando, pessoalmente, está alheio ao
que ocorre.)

(Mesa 10)

(Enquanto posiciona cuidadosamente os condimentos e a travessa com a
calabresa naquela mesa ouve: )
- Peguei aquela sua amiga semana passada...a Lívia. Bonita pra caralho, mas não
fala nada, cara.
- Ela é assim mesmo, fiquei sabendo que ela passou por alguns traumas, sabe,
coisas difíceis de superar.
- Ela supera com uma pica...
- Mano, cala a boca. Os pais dela morreram no mesmo ano... a mina tá tentando
se encontrar e você fala essas merdas.
- É bar, cara, só estava brincando. Aqui pode se falar qualquer coisa, não é,
Vitão? (ele sorri e volta para o seu posto)

(Mesa 8)

- Não traz aquela cerveja para mim, não, está muito cara. Vou beber o que eles
tão tomando agora, senão vou ter que lavar prato aqui hoje.
- E a dor de cabeça do dia posterior?
- Foda-se, aguento por um dia.

(Mesa 12)

(Ela levanta o rosto corado, num gole vira sua terceira caipirinha e monologa: )
- Para que você me quer aqui, hein?! Disse que é o único dia que podemos sair, e
é mesmo, mas o que você faz enquanto isso? Fuça nessa merda de celular, nessa droga.
Nem olha na porra da minha, cara. Que caralho! Você me apressa, me traz aqui, bebe
sua cerveja rapidamente, parece nervoso, ansioso, sei lá. Onde você quer ir, hein?!
Naquela merda de festa de aniversário de seus colegas de trabalho que você diz que não
gosta? Pode ir, vou a pé para a casa. Não fará muita diferença, fico sozinha lá. Eu e eu
mesma. Tive um dia de merda, mas me desculpe, isso não foi perguntado. Eu te
perguntei no carro, você nem fingiu interesse em refazer a pergunta, nada! Trocamos
três palavras, três hoje...
- Você vai ficar sozinha?
- Não estava me ouvindo?
- Estou distraído aqui, meu. O Gabriel disse que está dahora pra caralho a festa
da firma, tem de tudo.
- E por que ele não está aproveitando, então?! Enfim, vou embora.
- Mas porquê?
(Ela deixou 20 reais na mesa e foi, não de uma vez, embora. Esperou 20 minutos
por ele na esquina da frente ao bar, mas ele nem sequer notou. De longe viam-se as
lágrimas, agora abundantes, escorrendo pela sua face. Num outro dia, numa terça-feira
nada movimentada, ela foi sozinha ao bar, sentou-se na mesma mesa. Condicionada
pela melancolia, contou à pessoa mais próxima, que era Vitor, o que lhe ocorrera: - Eu
tinha torcido o pé descendo uma escada no trabalho, sabe?! Meu pé inchou muito, eu
mal consegui andar. Fui direto para o pronto socorro. Apenas enfaixaram o meu pé. O
médico falou para eu tomar um anti-inflamatório, que não tinha sido nada demais. Eu
não queria beber para não misturar o remédio com álcool, falam que corta o efeito. Ele
não percebeu nada, eu caminhava meio manca. Nada. Eu estava cheirando à spray. Ele
não comentou nada. Me traz uma cerveja, apenas uma. Minha avó teve um AVC, tenho
que visitá-la daqui a pouco.)

(Mesa 12)

(Ele vai embora depois de 25 minutos. Coloca o dinheiro dela no bolso. Paga
com cartão de crédito. Ou Vitor nunca mais o viu, ou sempre tem a impressão de vê-lo
quando nota alguém grudado numa tela de celular. Tanto faz. A nulidade persiste.)

(Mesa 12)

- Uma original e dois copos. Valeu.
- Como eu estava falando. Estar ou não num relacionamento é muito mais um
estado de espírito. Ele não tem que ser exposto, oficializado etc.
- Para mim você está apenas defendendo o seu lado; se suas características não
fossem essas e sim as opostas, você conseguiria argumentos para defendê-las do mesmo
modo. Você namora, de maneira oficial, se é que isso existe, manda mensagens para a
sua ex, enquanto a sua namorada não está pela cidade você sai por aí atrás de meninas
preferencialmente mais novas...devo continuar? Isso tudo soa muito mal resolvido, cara.
Se não fosse o fato de você ser um canalha, você não defenderia a canalhice...
- Aí você já está colocando um juízo de valor nas coisas que faço. Veja bem, eu
apenas não me sinto namorando; dessa forma, eu posso agir como um solteiro...
- Você explicou isso para a sua namorada?
- Claro que não, ela não entenderia.
- Então, no estado de espírito dela, vocês estão juntos?
- No meu também, só que não a todo o momento.

(Mesa 10)

- Vitão, ô, Vitão, traz a conta aí pra gente, por favor?

(Mesa 12)

- É o que eu disse, você vai conseguir se safar por conta dessa argumentação, só
espero que ela funcione internamente.

(Mesa 10)

- Valeu, cara! Porra, vocês beberam, hein?!

(Mesa 12)

- Essa conversa está muito séria para uma mesa de bar, cara. A Débora não vai
estar aqui, para onde vamos amanhã?

(Mesa 8)

- Traz a conta com a cerveja dele em separado, hein?!

(Mesa 12)

- ...naquele filme entediante lá, porra, 2 horas e 40, metade de imagens tiradas do
Discovery Channel.
- Você que é todo cult tem que aguentar essas obras.
- Porra, pera aí que a Débora está ligando.
- Oi, Dé. Tudo bem, linda, e aí? Tudo tranquilo...estou no bar com o
Augusto...daqui a pouco vamos embora. Como está Minas? Entendi, mande um abraço
para a sua família. Viu, estou com saudades, quando vamos nos ver? Ahh, vai demorar,
que pena. Não, não ando fazendo nada demais, estou tranquilo, relaxando. Me fale sobre
o seu dia...nossa, que legal, e aí? Poxa, ela tem que tomar cuidado para não cair. Só
isso? Ah, você sabe que não dá para eu ir para a sua casa, tenho coisas para resolver por
aqui. Já conversamos sobre isso. Coisas da escola. Sim, estamos de férias, é que estou
com uns projetos aí. Não posso falar, já disse, é surpresa. Ó, já tenho que sair, o
Augusto acorda cedo amanhã, já está reclamando de sono. Sim, tudo bem. Beijos. Te
amo também.
- Vai ter que inventar esses projetos agora, você sabe, né?!
- Pois é, cara. Não é fácil manter mentiras. Que mundo errado. Não acredito em
honestidade, confio mais naqueles que mostram os seus erros e sua humanidade, sabe?!
- Então você não confia em ninguém.
- Pode ser que não. Nem em mim mesmo.
- Principalmente em você mesmo. Se eu fosse você, não confiaria em mim
mesmo.
- Já deu, vamos para aquela festa que eu te falei. Arranjei umas coisas para você.
- Só para mim, é?!
- Claro que não, o altruísmo não existe em mim.
- Agora sim. Garçom, a conta aqui, por favor.

Dia de semana, às 11: 35, de acordo com a média do meu celular e do relógio de
Vitor, o bar fechou. Arrumaram-se as cadeiras, colocou-se tudo em ordem. A faxineira
viria pela manhã limpar os pequenos estragos de uma quinta-feira à noite. 00: 02 e está
tudo devidamente ordenado. Vitor se despede de seus companheiros e caminha até a sua
casa. São apenas 5 minutos de um lugar para o outro.
Ele chega em seu pequeno apartamento. Toma um banho quente para relaxar.
Não come nada. Usa a televisão como sonífero. 1:01 da madrugada ele deita em sua
cama. No meio termo entre o estado de dormência e o de vigília várias imagens daquele
dia pululam em sua mente, formando uma narrativa amorfa e inverossímil: A namorada
de Minas sofreu um AVC. Os dois amigos pedem uma cerveja mais leve. O galanteador
defende a ideia que uma garota realmente precisa de sexo para que se curem os traumas.
A garota ignorada pelo namorado é chamada de viado. Débora é bonita pra caralho. Ele
está numa festa em que nada faz sentido. Perde a consciência. Dorme. Acorda. Mas que diabos,
o que realmente ouviu na noite passada?

domingo, 21 de julho de 2013

À dependência.


          Acredito que muitas pessoas se apeguem a alguns rituais, antecedendo atos, para que esses saiam da maneira esperada. Alguns jogadores de futebol pisam primeiro com a perna direita no gramado e depois fazem o sinal da cruz, devotos que são. Um amigo meu até hoje tem uma maneira específica de focar sua respiração antes de provas importantes. Outro tinha que arrumar o cabelo de uma certa exata maneira antes de ir a festas, caso não o fizesse, não iria conhecer ninguém de interessante; isso mudou quando uma confraternização foi feita na sua própria casa e preparada sem o consentimento dele. O que aconteceu é que ele chegou de uma viagem de cinco horas com a festa já rolando, descabelado, cansado, sedento por sua cama. Porém, obrigado a participar daquele encontro, ficou por lá, até conhecer uma linda garota com quem ele namorou por três felizes anos. De certa maneira, essa lição nada vale, já que atualmente ele mal possui cabelo, mas, o que quero dizer, é que podemos nos desapegar daquela mania, daquele rito; substituindo-o, esquecendo-o através do tempo ou até mesmo forçosamente; temos o poder inconsciente, à despeito do que foi dito a pouco, de reforçar tal rito, criando outros a partir de um, tornando-se obsessivo, não sabendo como lidar com tarefas simples sem aquilo. O desapego não é simples, acontecendo ou não; no meu caso, não cabe a mim analisar.
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Estávamos, Marcela e eu, no nosso terceiro ano de relacionamento quando decidimos morarmos juntos. Ambos cursando faculdade e trabalhando, conseguimos alugar um apartamento simpático que nos facilitou a vida por certo tempo. Construímos nossa própria rotina, acordávamos no mesmo horário, tomávamos o café-da-manhã apressadamente, íamos trabalhar. Depois nos encontrávamos para o almoço. Quando tínhamos dinheiro o suficiente, comíamos em restaurantes de certo prestígio, quando não, improvisávamos na cozinha.
Não havia muitos dramas, claro que brigas aconteciam, mas íamos nos ajustando, fazendo daquela casa e de nós um ser uno, ou pelo menos dependente da presença do outro. À noite caminhávamos conjuntamente à faculdade. Cansados, assistíamos a alguma aulas enfadonhas, outras boas, algumas tão insuportáveis que tínhamos que dar várias voltas pelo campus. Sempre juntos, doentiamente juntos.
Antes de dormir é que algo floresceu em mim, algo bastante íntimo, pelo menos para aquele que era observado. Eu não conseguia dormir sem observá-la, calmamente, diminuir a sua respiração e progressivamente cair num sono que se tornava profundo. Após esse exercício de relaxamento, sim, que eu conseguia descansar.
No começo daquele tempo juntos esse ato era lindo, ela gostava de ser observada e se sentir protegida, me dizia. Eu ia consolidando cada vez mais aquele ritual. Após um tempo, ela nem ligava mais para tal coisa, eu me sentia mal quando nossas rotinas não batiam e eu não conseguia vê-la adormecer. Eu tinha que tomar ansiolíticos e do mesmo modo o meu sono era agitado, intranquilo. Eu estava completamente viciado naquele ritual e, por conseguinte, nela. Eu tinha que tê-la.
           Um dia terminamos o relacionamento. Não vou relatar tudo o que levou ao rompimento, é apenas isso o que se precisa saber: eu não a tinha mais.
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Estava totalmente atordoado. Passava praticamente o dia assim; via-me mais morto que vivo, fitando sem propósito coisas que se postavam a minha frente. Para quem me olhava, parecia que eu refletia sobre algo, mas não, não havia reflexão alguma, o que era para ser pensado já estava saturado: os motivos para o meu entorpecimento eram claros e óbvios. O que havia eu de fazer?
As noites na faculdade se faziam e desapareciam num entorpecimento que tendia ao irreal. Uma hora estava lá, completamente sozinho pois minhas amizades foram desaparecendo com a minha derrocada, assistindo-a interagir facilmente com outras pessoas, criando laços para mim impossíveis. Na eternidade de alguns segundo eu já estava novamente solitário em casa, tentando inutilmente me concentrar em alguma leitura.
           Quem já dessa maneira sofreu e tenha talvez uma mente um tanto quanto perturbada por questões que não prestam sabe: sair da prostração em que se encontra não é um mero querer; longe disso, é uma luta constante e hipócrita de você consigo mesmo, dizendo-se: “Você vai sair dessa!”. Provavelmente é uma grande mentira, porém são essas palavras que te mantém vivo.
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Cedi à vida, pelo menos tentei; as pessoas enxergavam em mim um ser mais carismático. Recorri à ajuda de alopatias, homeopatias, psicanálise, psicologia, psiquiatria, xamanismo, yoga, pilates, animais de estimação, livros de auto-ajuda (queimados posteriormente), empréstimos de dinheiro – como pagar por tudo isso? -, mas, por fim, a melhora se deu por um dos aspectos citados e outro, que me arrebatou.
Dana, minha gata, foi de grande serventia; sua apatia para com o mundo me remediava; seu carinho com propósitos também; a sua discrição trazia todo um charme àquele felino. Me apeguei a ela. Quando sumia, dando vazão a seus instintos selvagens, eu me preocupava, mas logo ela voltava, às vezes com um presente: algo que matara e trouxera cuidadosamente. O que me arrebatou, bem, isso já era de se esperar, iria ocorrer mesmo que a sua vontade, conscientemente, seja de permanecer isolado, o convívio social é impossível de se desvencilhar.
            Vai-se ao trabalho, encontra-se na faculdade, vê-se, sem motivos aparentes, num bar ao redor de um daqueles locais. Apega-se aquele bar, a cerveja, para acalmar e ajudar no sono, torna-se uma rotina atraente. Sentei-me sempre ao fundo daquele local, num lugar escuro, mesa quinze: - Uma Original, por favor, eu pedia friamente ao garçom. Eu bebia, de maneira calma e caminhava mais sereno, acompanhado pela música em meus fones de ouvido, em direção à minha casa, onde me deparava com Dana e a minha vontade de desvanecer placidamente. O sono, porém, ainda era agitado.
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Numa noite de quinta-feira, no mesmo bar de sempre – ele se encontra no meio caminho entre o meu apartamento e a faculdade, eu fiz o pedido usual, natural, rotineiro: - Uma Original, por favor. Atendido prontamente pelo garçom, que provavelmente deve ter alguma ideia sobre o ser bizarro que aparece quase todos os dias no mesmo horário, pede a mesma coisa, e está sempre solitário, comecei a degustar aquela cerveja, deliciosamente gelada.
Havia sido um dia cansativo, por conta disso eu tinha aquele aspecto de refletir sobre algo, olhando para um ponto fixo, sem que nada de palpável perpassasse a minha mente. Durante essa (não) divagação, eu encontrei meu ponto fixo numa certa garota, sem ao menos perceber isso e também, por conseguinte, que eu poderia ser visto como um maníaco. Nada disso ocorreu; algo curioso, felizmente, incidiu. Ela chegou-se até a minha mesa, o que apenas percebi quando seus passos firmes me tiraram do meu estado torpe. Eu não estava acostumado com aquilo, ela puxou uma cadeira e perguntou se poderia sentar-se, eu apenas balancei a cabeça timidamente, insinuando que sim, que ela poderia fazer aquilo.
A conversa, no começo, não foi das mais fluidas. Eu respondia algumas perguntas com monossílabos, suspeitando aquela abordagem. A garota era resistente, continuava e eu, gradativamente, fui dando conta de seu esforço e resolvi retribui-lo fazendo, também, questões. A empatia foi se tornando maior, fui saindo da minha rotina, quando percebi estávamos na nossa sexta cerveja e já era uma e meia da manhã. O bar estava fechando. Tarde que era, resolvi acompanhá-la até a sua casa, que se demonstrou ser mais longe do que aparentava; em todo caso, eu estava bem disposto, tanto pela conversa quanto pelo efeito do álcool em meu corpo.
Chegando a frente de sua casa ela disse que gostaria de confessar algo. Mais precisamente, ela me contou que observava como Marcela e eu éramos apaixonados, como nossa relação era demasiada bela etc etc. Me disse, também, que acompanhou a minha derrocada. Ela, de nome Vivian, me observava, e eu, na nebulosidade da minha depressão nunca me dei conta. Ela estudava na mesma faculdade que eu, frequentava o mesmo curso, porém um ano mais nova, e eu nunca, nunca me dei conta daqueles admiráveis cabelos negros e longos, daqueles olhos vívidos que perscrutam o que enxergam, daquele rosto simétrico marcado por pequenas pintas que apareciam e desapareciam de acordo com a luz. Estava com raiva de mim mesmo, porém aliviado, naquele instante. O certo é que, superficialmente, ela me conhecia, já eu não, não a conhecia, mas, com o tempo, isso aconteceu.
           Naquela noite nos beijamos timidamente. Nada mais que isso sucedeu. Naquela noite.
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Fui retomando minha energia e disposição à medida que o relacionamento evoluía. Ela mudou-se para o meu apartamento no sétimo mês de namoro. Fomos dialogando e conseguimos achar uma rotina confortável para ambos. O mais importante: eu poderia vê-la dormir, assim como acontecia com Marcela. Vivian dormia ainda mais rapidamente, era impressionante, mas tive êxito em me adequar àquilo.
          O que me preocupa é a nossa codependência. Para viver alegre eu, sozinho, sou um fracasso. O ritual da minha felicidade é estritamente ligado ao dela. Medida paliativa ou não, encontro-me, no momento, bem.