sábado, 9 de fevereiro de 2013

À criação



‘Sinceramente, não sei por que você faz citações não tendo essa habilidade. Primeiro, duvido bastante que Hemingway tenha falado tal coisa; segundo: caso você tenha tirado isso de uma criação artística dele, não foi o autor em si que disse, mas, sim, seu persona...’
‘Que bobagem! E através de quem o personagem fala senão pelo autor?’
‘Você está minimizando o trabalho de criação do escritor afirmando isso. Ele só pode, então, emitir os seus próprios pontos de vista, estando incapacitado, portanto, de criar inúmeras facetas através de suas personagens?’
‘Você sabe muito bem que o Hemingway era assim!’
‘Então ele não criou nada?’
‘Criou através dele mesmo.’
‘A partir disso você pode acusar qualquer escritor de qualquer coisa. Antissemitismo, homofobia, incitação à violência etc.’
‘O correto é deixá-los falarem qualquer merda?’
‘Todo mundo pode falar qualquer coisa! Somos teoricamente livres para nos expressarmos!’ – “nesse ponto eu já estava gritando, bufando de raiva.”
‘Você sabe que não é assim que funciona, meu bem’ – “odeio essas palavras carinhosas sarcásticas.”
‘Eu sei, ditadora!’
“Suspeito que nesse momento o clima para algum ato amoroso tenha se dissipado. Não havia mais vestígios dele, por mais que se procurasse. O que acontece é que não agüentava mais ter essas discussões. Ouviu o diálogo, não? é muito desgastante.”
“Você tem certeza que foi dessa maneira que o diálogo ocorreu?”
“Claro que não. É difícil lembrar exatamente uma conversa.” – eu tinha que admitir isso. No entanto, uma que foi criada e memorizada, nem tanto.
“Há uma possibilidade de você ter preenchido algumas lacunas com a sua imaginação, então?”
“Onde você quer chegar?”
“Olhe, não quero te chatear, mas existe a possibilidade dessa conversa não ter ocorrido dessa maneira, você concorda?”
“Eu já concordei, mas que diabos!”
“Mantenha a calma.”
“Estou calmo, ó mestre da psicologia.”
“Sarcasmo não demonstra um estado de tranqüilidade.”
“Pode demonstrar.”
“Não nesse momento.”
“Ok, doutora. Não sei por que você está tentando me jogar contra mim mesmo.”
“Não estou fazendo isso. Estou tentando apenas trabalhar em algumas falhas comportamentais que podem estar afetando o seu julgamento.”
“Muito bem. Porém...ela nunca leu Hemingway!
“Você não pode ter certeza disso.”
“Não, mas nem é esse o ponto. Até você está deturpando a nossa própria conversa. O diálogo com ela foi mais ou menos daquele jeito. Ah, já sei! Qual foi a versão dela?”
“Tenho que manter o sigilo entre mim e o paciente.”
“Você diz: o sigilo entre você e a minha namorada?”
“Sim.”
“Mas se você está me analisando através do discurso dela também, esse sigilo foi rompido. Ela está na sua mente.”
“Estou trabalhando com o discurso de ambos.”
“E depois vai dizer qual foi o mais plausível?” – eu estava me deliciando.
“Não é meu trabalho fazer isso."
“Desisto, podemos passar para a bobagem de como aquela discussão me afetou e blá,bl..”
“Infelizmente o nosso tempo acabou.”
Atravessando a rua do consultório, deparei-me com ela chegando para a sua hora de confissões. Fui ao seu encontro e perguntei: “De quem foi a idéia de fazer uma terapia de casal separadamente e com a mesma psicóloga?”
“Foi sua. Dizia que se fizéssemos conjuntamente iríamos brigar entre si e perguntar para a psicóloga quem tinha razão.”
“Pois é. Isso vem acontecendo, de qualquer modo, ainda que indiretamente.”
“Usou a sua versão do diálogo sobre o Hemingway?”
“O diálogo não era sobre ele em si, e sim a capacidade criadora...enfim.”
“Esqueça esse assunto. Depois te digo como foi a minha consulta. Após ela, iremos elaborar o que você dirá na semana que vem. Faremos conjuntamente, escutou?!”
“Será que ela ainda não percebeu nada?”
“Espero que não, isso está tão divertido! Nossos personagens estão evoluindo. Tenho que ir; nos vemos em casa.”
Despedimo-nos friamente. Manter o disfarce é importante.
Como será que a psicóloga irá nos classificar quando descobrir o que realmente ocorre? Mentirosos patológicos ou apenas criadores na vida vivida?