domingo, 21 de julho de 2013

À dependência.


          Acredito que muitas pessoas se apeguem a alguns rituais, antecedendo atos, para que esses saiam da maneira esperada. Alguns jogadores de futebol pisam primeiro com a perna direita no gramado e depois fazem o sinal da cruz, devotos que são. Um amigo meu até hoje tem uma maneira específica de focar sua respiração antes de provas importantes. Outro tinha que arrumar o cabelo de uma certa exata maneira antes de ir a festas, caso não o fizesse, não iria conhecer ninguém de interessante; isso mudou quando uma confraternização foi feita na sua própria casa e preparada sem o consentimento dele. O que aconteceu é que ele chegou de uma viagem de cinco horas com a festa já rolando, descabelado, cansado, sedento por sua cama. Porém, obrigado a participar daquele encontro, ficou por lá, até conhecer uma linda garota com quem ele namorou por três felizes anos. De certa maneira, essa lição nada vale, já que atualmente ele mal possui cabelo, mas, o que quero dizer, é que podemos nos desapegar daquela mania, daquele rito; substituindo-o, esquecendo-o através do tempo ou até mesmo forçosamente; temos o poder inconsciente, à despeito do que foi dito a pouco, de reforçar tal rito, criando outros a partir de um, tornando-se obsessivo, não sabendo como lidar com tarefas simples sem aquilo. O desapego não é simples, acontecendo ou não; no meu caso, não cabe a mim analisar.
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Estávamos, Marcela e eu, no nosso terceiro ano de relacionamento quando decidimos morarmos juntos. Ambos cursando faculdade e trabalhando, conseguimos alugar um apartamento simpático que nos facilitou a vida por certo tempo. Construímos nossa própria rotina, acordávamos no mesmo horário, tomávamos o café-da-manhã apressadamente, íamos trabalhar. Depois nos encontrávamos para o almoço. Quando tínhamos dinheiro o suficiente, comíamos em restaurantes de certo prestígio, quando não, improvisávamos na cozinha.
Não havia muitos dramas, claro que brigas aconteciam, mas íamos nos ajustando, fazendo daquela casa e de nós um ser uno, ou pelo menos dependente da presença do outro. À noite caminhávamos conjuntamente à faculdade. Cansados, assistíamos a alguma aulas enfadonhas, outras boas, algumas tão insuportáveis que tínhamos que dar várias voltas pelo campus. Sempre juntos, doentiamente juntos.
Antes de dormir é que algo floresceu em mim, algo bastante íntimo, pelo menos para aquele que era observado. Eu não conseguia dormir sem observá-la, calmamente, diminuir a sua respiração e progressivamente cair num sono que se tornava profundo. Após esse exercício de relaxamento, sim, que eu conseguia descansar.
No começo daquele tempo juntos esse ato era lindo, ela gostava de ser observada e se sentir protegida, me dizia. Eu ia consolidando cada vez mais aquele ritual. Após um tempo, ela nem ligava mais para tal coisa, eu me sentia mal quando nossas rotinas não batiam e eu não conseguia vê-la adormecer. Eu tinha que tomar ansiolíticos e do mesmo modo o meu sono era agitado, intranquilo. Eu estava completamente viciado naquele ritual e, por conseguinte, nela. Eu tinha que tê-la.
           Um dia terminamos o relacionamento. Não vou relatar tudo o que levou ao rompimento, é apenas isso o que se precisa saber: eu não a tinha mais.
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Estava totalmente atordoado. Passava praticamente o dia assim; via-me mais morto que vivo, fitando sem propósito coisas que se postavam a minha frente. Para quem me olhava, parecia que eu refletia sobre algo, mas não, não havia reflexão alguma, o que era para ser pensado já estava saturado: os motivos para o meu entorpecimento eram claros e óbvios. O que havia eu de fazer?
As noites na faculdade se faziam e desapareciam num entorpecimento que tendia ao irreal. Uma hora estava lá, completamente sozinho pois minhas amizades foram desaparecendo com a minha derrocada, assistindo-a interagir facilmente com outras pessoas, criando laços para mim impossíveis. Na eternidade de alguns segundo eu já estava novamente solitário em casa, tentando inutilmente me concentrar em alguma leitura.
           Quem já dessa maneira sofreu e tenha talvez uma mente um tanto quanto perturbada por questões que não prestam sabe: sair da prostração em que se encontra não é um mero querer; longe disso, é uma luta constante e hipócrita de você consigo mesmo, dizendo-se: “Você vai sair dessa!”. Provavelmente é uma grande mentira, porém são essas palavras que te mantém vivo.
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Cedi à vida, pelo menos tentei; as pessoas enxergavam em mim um ser mais carismático. Recorri à ajuda de alopatias, homeopatias, psicanálise, psicologia, psiquiatria, xamanismo, yoga, pilates, animais de estimação, livros de auto-ajuda (queimados posteriormente), empréstimos de dinheiro – como pagar por tudo isso? -, mas, por fim, a melhora se deu por um dos aspectos citados e outro, que me arrebatou.
Dana, minha gata, foi de grande serventia; sua apatia para com o mundo me remediava; seu carinho com propósitos também; a sua discrição trazia todo um charme àquele felino. Me apeguei a ela. Quando sumia, dando vazão a seus instintos selvagens, eu me preocupava, mas logo ela voltava, às vezes com um presente: algo que matara e trouxera cuidadosamente. O que me arrebatou, bem, isso já era de se esperar, iria ocorrer mesmo que a sua vontade, conscientemente, seja de permanecer isolado, o convívio social é impossível de se desvencilhar.
            Vai-se ao trabalho, encontra-se na faculdade, vê-se, sem motivos aparentes, num bar ao redor de um daqueles locais. Apega-se aquele bar, a cerveja, para acalmar e ajudar no sono, torna-se uma rotina atraente. Sentei-me sempre ao fundo daquele local, num lugar escuro, mesa quinze: - Uma Original, por favor, eu pedia friamente ao garçom. Eu bebia, de maneira calma e caminhava mais sereno, acompanhado pela música em meus fones de ouvido, em direção à minha casa, onde me deparava com Dana e a minha vontade de desvanecer placidamente. O sono, porém, ainda era agitado.
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Numa noite de quinta-feira, no mesmo bar de sempre – ele se encontra no meio caminho entre o meu apartamento e a faculdade, eu fiz o pedido usual, natural, rotineiro: - Uma Original, por favor. Atendido prontamente pelo garçom, que provavelmente deve ter alguma ideia sobre o ser bizarro que aparece quase todos os dias no mesmo horário, pede a mesma coisa, e está sempre solitário, comecei a degustar aquela cerveja, deliciosamente gelada.
Havia sido um dia cansativo, por conta disso eu tinha aquele aspecto de refletir sobre algo, olhando para um ponto fixo, sem que nada de palpável perpassasse a minha mente. Durante essa (não) divagação, eu encontrei meu ponto fixo numa certa garota, sem ao menos perceber isso e também, por conseguinte, que eu poderia ser visto como um maníaco. Nada disso ocorreu; algo curioso, felizmente, incidiu. Ela chegou-se até a minha mesa, o que apenas percebi quando seus passos firmes me tiraram do meu estado torpe. Eu não estava acostumado com aquilo, ela puxou uma cadeira e perguntou se poderia sentar-se, eu apenas balancei a cabeça timidamente, insinuando que sim, que ela poderia fazer aquilo.
A conversa, no começo, não foi das mais fluidas. Eu respondia algumas perguntas com monossílabos, suspeitando aquela abordagem. A garota era resistente, continuava e eu, gradativamente, fui dando conta de seu esforço e resolvi retribui-lo fazendo, também, questões. A empatia foi se tornando maior, fui saindo da minha rotina, quando percebi estávamos na nossa sexta cerveja e já era uma e meia da manhã. O bar estava fechando. Tarde que era, resolvi acompanhá-la até a sua casa, que se demonstrou ser mais longe do que aparentava; em todo caso, eu estava bem disposto, tanto pela conversa quanto pelo efeito do álcool em meu corpo.
Chegando a frente de sua casa ela disse que gostaria de confessar algo. Mais precisamente, ela me contou que observava como Marcela e eu éramos apaixonados, como nossa relação era demasiada bela etc etc. Me disse, também, que acompanhou a minha derrocada. Ela, de nome Vivian, me observava, e eu, na nebulosidade da minha depressão nunca me dei conta. Ela estudava na mesma faculdade que eu, frequentava o mesmo curso, porém um ano mais nova, e eu nunca, nunca me dei conta daqueles admiráveis cabelos negros e longos, daqueles olhos vívidos que perscrutam o que enxergam, daquele rosto simétrico marcado por pequenas pintas que apareciam e desapareciam de acordo com a luz. Estava com raiva de mim mesmo, porém aliviado, naquele instante. O certo é que, superficialmente, ela me conhecia, já eu não, não a conhecia, mas, com o tempo, isso aconteceu.
           Naquela noite nos beijamos timidamente. Nada mais que isso sucedeu. Naquela noite.
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Fui retomando minha energia e disposição à medida que o relacionamento evoluía. Ela mudou-se para o meu apartamento no sétimo mês de namoro. Fomos dialogando e conseguimos achar uma rotina confortável para ambos. O mais importante: eu poderia vê-la dormir, assim como acontecia com Marcela. Vivian dormia ainda mais rapidamente, era impressionante, mas tive êxito em me adequar àquilo.
          O que me preocupa é a nossa codependência. Para viver alegre eu, sozinho, sou um fracasso. O ritual da minha felicidade é estritamente ligado ao dela. Medida paliativa ou não, encontro-me, no momento, bem.