domingo, 17 de agosto de 2014

Ao suposto fiasco

Ele pensava tão fortemente que aquele momento estava tomando a forma de um grande fiasco que acabou por falar, como se para si mesmo, mas num volume audível para a outra pessoa:
      - Deus, isso é um fiasco.
        Como num romance do século XIX, logo após pronunciar essas palavras, ele corou.
      - Por que pensa nisso como um fiasco? - ela perguntou docemente.
      - Eu realmente vou ter que apontar os motivos? - ele já parecia um tanto quanto irritado.
      -“Apontar os motivos”? Quem fala assim? - ela também, talvez com o pedantismo dele.
      - Muitas pessoas falam desse modo. Isso não é importante, no entanto. Você quer rever toda a nossa conversa com o intuito de eu ilustrar que tal encontro está fadado ao fiasco, se é que já não o é?
      - Você poderia ser mais pedante? - eu estava certo, era realmente o pedantismo dele que a estava irritando.
       - É uma pergunta retórica?
       - Sim.
       - Ok, vamos rever todo a nossa noite para encontrar os porquês desse nosso fracasso.
       - Eu não falei nada sobre fracasso. Não me inclua nisso.
       - Um encontro pode ser um fracasso para um mas não para o outro?
       - Sim. Mas fale logo. Faça seus apontamentos. - ela fez questão de prolongar a última palavra da sua sentença.
       Antes dos apontamentos, no entanto, pode ser útil apresentar o lugar no qual nossos personagens estão inseridos e o que acontece ao redor deles.
       Eles estão na parte de dentro de um bar bem localizado daquela cidade que costuma atrair grande público principalmente aos finais de semana. Entretanto, eles estavam ali numa quarta-feira à noite. Não havia, assim, muitos clientes, apenas outros dois casais em mesas próximas e um homem de meia-idade que observa atenta e melancolicamente que Bob Dylan vem sendo a trilha sonora da sua solidão. Ele, como o clichê me obriga a declarar, estava no balcão do estabelecimento, pensando se deveria ou não entabular conversa com a garçonete que ali permanecia. O que o nosso apreciador de folk não sabia, infelizmente, é que aquela que estava a lhe servir espera exatamente algum tipo de entretenimento.
       Um dos casais parecia satisfeito com o silêncio entre eles. De mãos dadas, aproveitavam a ocasião. Relaxavam bebendo cerveja e apenas admirando um ao outro. Depois de oito anos de relacionamento, não há mais tantas histórias para se contar e, nesse caso, se houvesse, elas provavelmente gerariam algum tipo de desconforto, já que, bem no íntimo de cada um, vamos dizer que qualquer palavra pode ser motivo para brigas. O relacionamento se mantem na comodidade das rotinas conjuntas e do sexo certo. Eles se gostam, mas apenas vão perceber a grande força de seus sentimentos no momento em que ele decidir que é melhor aceitar aquele doutorado na França e ficar longe dela por um tempo bastante razoável.
      O outro casal não é lá muito interessante. Eles dialogavam pelo celular com amigos e possíveis amantes, na falta de uma palavra mais adequada. Entre eles, em comum, a grande vontade de transar, o que é suficiente para a felicidade ulterior e passageira, porém reconfortante, de ambos.
     Voltamo-nos aos nossos protagonistas. Ele estava na tentativa de explicar a ela o fiasco da noite. Com o efeito do álcool, a eloquência de ambos deu as caras.
    - Pois bem. Primeiramente, nós nem nos conhecíamos pessoalmente. Marcamos isso totalmente às cegas, apesar de eu ter tentado checar o que você gostava em redes sociais. Mas você parece bastante reservada, o que me intrigou. Resolvi, então, tentar conversar com você, já que temos amigos em comum. Foi difícil, mas marcamos de sair hoje, apesar das suas respostas monossilábicas virtualmente...
     - Eu não tinha nenhum outro plano para hoje.
     - Esse é um grande incentivo para se sair com alguém.
     - Não se ofenda. Eu poderia estar assistindo a filmes, jogando video-game, dormindo, dormindo e sonhando, estudando ou simplesmente protelando. Você pode se considerar um vencedor.
     - Estou encabulado. - ele disse ironicamente.
     - Continue a sua revisão da nossa noite, por favor.
     - Ah, sim. Viemos aqui e fiz perguntas sobre as suas preferências artísticas...
     - Você ficou ofendido quando eu disse que não tolerava Tarantino, é isso?
     - Não. - ele poderia ter sido mais honesto. Em parte foi isso.
     - Diga a verdade.
     - Ah, é que...
     - É apenas uma questão de gosto estético. O que eu digo não é uma verdade universal.
     - Ok, e quando perguntei sobre literatura, lembra o que disse?
     - Sim! Eu disse que Jack Kerouac é o meu escritor favorito...
     - Eu odeio a geração beat.
     - Eu percebi, mas o que você pensa não é uma verdade universal.
     - Droga. E sobre esportes?
     - Eu disse que não pratico.
     - E aí se acabou o assunto.
     - Você poderia ter me perguntado os motivos para eu não praticar. O assunto poderia ter fluído, sim. Eu até poderia ter fingido algum interesse.
     - É algo que você faz costumeiramente?
     - Todos fazemos.
     - Tenho que concordar, ainda mais num primeiro encontro.
     - Sim.
     - Certo, certo.
     - Vamos dizer que você está tomando toda a iniciativa da conversa também. Isso está totalmente unilateral.
     - Mas, mas...eu li que normalmente os homens tem que demonstrar certa segurança...
     - Isso é meio que autoritarismo. E você anda lendo auto-ajuda, é isso? - ela perguntou provocando-o.
     - Não exatamente. É que eu tenho certas dificuldades nesse tipo de situação...
     - Então apelou para a auto-ajuda?
     - Sim. - ele finalmente cedeu tristemente.
     - Ora, eu só estou brincando, tenha algum senso de humor.
     - Estou me acostumando com o seu jeito. Ainda não sei muito bem como agir.
     - Quer que eu procure alguma coisa do Augusto Cury para te ajudar?
     - Pelo menos ele vai dizer algo, diferentemente de alguns escritores que vão do nada ao lugar nenhum.
     Resta dizer que os dois continuaram se alfinetando por um bom tempo. Perderam a noção do tempo.   Nesse ínterim, ela, por conta já das muitas cervejas tomadas, teve que ir ao banheiro. Antes disso ela disse:
     - Já volto, estou apertada. Está meio tarde e amanhã trabalho. Tomamos um saideira, pode ser?
     - Sim, sem problemas. - ele disse tomado pela depressão do adeus.
     Estava realmente tarde. Ela, de fato, teria que trabalhar bem cedinho na quinta-feira; e, além disso, bem, apesar da diversão, ele parecia meio  que neuroticamente excêntrico.
     Voltando do banheiro, ela o pegou mexendo os lábios, num cantarolar mudo, por parte dele, mas não do sistema de som do bar, com os dizeres: “Stay, lady, stay, stay with your man awhile”.
     Nenhum dos dois haviam comentado sobre a trilha sonora da noite. Daí o arrebatamento dela em vê-lo daquele modo, mexendo os lábios para um dos músicos preferidos dela, pedindo inconscientemente pelo o que veio acontecer. Ele a viu contemplando-o; ele corou de novo; de súbito, ela também corou. Para a felicidade, principalmente, dele, que tanto o defendia, o fiasco não se deu por completo. Ela já não concordava de antemão com tal teoria. Em comparação com os outros personagens daquela história, já se via que a maior harmonia se encontrava nas provocações do nosso casal em foco.